Começa numa perseguição de carro e continua numa perseguição a pé, uma família acuada tenta fugir de seus perseguidores se embrenhando na floresta, a tensão parece aumentar a cada segundo e o perigo os cerca por todos os lados. A jornada de June, seu marido Luke e sua filha Hannah começa e termina num piscar de olhos, dando o início a outro capítulo de suas vidas, eles são refém de um mundo novo e assustador que transformou a vida de toda a população de um EUA que não existe mais.
A premissa começa com desfecho trágico, mas é apenas o início da saga baseada no popular best seller The Handmaid’s Tale da canadense Margaret Atwood lançado a mais de trinta anos atrás, mas com um contexto atemporal que poderia facilmente acontecer nas sociedades atuais.
O livro foi adaptado por Bruce Miller em formato de série online pelo site de streaming Hulu se passando nos tempos de hoje, mas mantendo a premissa de sua contra parte literária que é situado num futuro distópico onde uma mulher é forçada a viver como concubina sobre o controle de regime teocrático fundamentalista.
A mulher em questão é June, agora com o nome de Offred, presta serviço em uma residência de um homem conhecido apenas como “Comandante”. A série se desenvolve sobre o ponto de vista da criada e partir disto o expectador começa a imergir neste futuro, aprendendo aos poucos como o novo regime funciona, ao mesmo tempo em que somos levados através de flashbacks no início da queda da sociedade que conhecemos sendo aos poucos reprimida e destruída.
Antes que você continue seguindo com este texto devo alertá-lo que “The Handmaid’s Tale” não é um série comum, ela é complexa, reflexiva e chocante em todos os sentidos, não é um seriado de respostas fáceis, os personagens não são unidimensionais e o ritmo mais cadenciado é proposital para que o público que assiste possa absorver todas as reviravoltas e emoções que acontecem a cada episódio, a série estimula seu senso crítico como poucas atualmente.
Em tempos de empoderamento feminino cada vez mais crescente dentro da sociedade, sendo representado na cultura pop por personagens femininas fortes e sendo carregado como ponto de ignição para afirmação da luta das mulheres em busca de igualdade de gênero, “The Handmaid’s Tale” chega como uma série relevante para botar o dedo na ferida, que chega para não só para criticar o conservadorismo e a repressão masculina pragmática, mas para expor de forma assustadora o sofrimento daquelas mulheres que tentam a todo custo reconquistar sua liberdade perdida, fazendo um interessante contraponto a nossa sociedade atual.
Os episódios iniciais conseguem situar bem o expectador neste universo repressor, além de nos trazer uma das melhores personagens do ano vivida pela atriz Elizabeth Moss (Top of the Lake, Mad Men). Sua Offred é fascinante, imprevisível e representa muito bem a voz feminina que se recusa a se calar frente a um regime machista e extremamente conservador.
Ainda sobre Moss, a atriz serve como âncora da série, que funciona porque suas interpretações e nuances são precisas, do momento que você conhece o passado de Offred depois de ser capturada na floresta no início do episódio piloto, logo depois sendo levada para se preparar para se tornar uma criada fértil (cujo o principal serviço é prover crianças as famílias do regime) sobre os cuidados da tirana Tia Lydia (Ann Dowd) até chegar na casa do Comandante (Joseph Fiennes) e sua esposa Serena (Yvone Strahovski), sendo assim partindo dessa trajetória nos vemos atrelados a personagem profundamente torcendo para que ela tenha forças e coragem de sobreviver a tanta repressão a sua volta.
A trama da série é bastante rica e cheia de personagens incríveis e fascinantes, mas também é cheio de cenas bizarras e desconfortáveis como as introduzidas no episódio “Birth Day” (1×02) e intensas como no brilhante e assustador episódio “Late” (1×03) que nos ajudam a entender como funciona o mecanismo estrutural cotidiana do regime. O roteiro da série não só sugere trabalhar com assuntos relacionados a gênero e preconceito, ela também prefere demonstrá-los na pele das formas mais cruéis possíveis, seja nas ruas (pessoas enforcadas a cada esquina), seja dentro das casas (os comandantes tem passados tenebrosos) ou nas instalações de treinamento (torturas e castrações acontecem constantemente), além de evidenciar nos diálogos através de seu subtexto o quanto a ditatura ideológica está impregnada naquela sociedade.
Outro aspecto positivo do seriado é a parte técnica que contribui bastante para imersão do expectador, a fotografia clara e ensolarada que dá um falso aspecto de paraíso com tomadas belíssimas ao mesmo tempo evidencia um ar meio claustrofóbico acentuado para pôr uma direção competente em basicamente todos os episódios com estilo de filmagem bastante cru e com poucos cortes, privilegiando bastante os atores em cena num estilo que se aproxima dos mesmos criando um aspecto mais íntimo durante as cenas, isto acentua bastante o impacto de cenas mais fortes causando desconforto a quem assiste.
Como todos os seriados que possuem mais liberdade, a série também toma riscos, os cinco primeiros episódios são bastante focados em Offred no presente e no passado, porém não deixa de desenvolver personagens secundários como Moira (Samira Wiley),melhor amiga da protagonista desde antes do regime, ainda temos a fascinante e destemida Ofglen (Alexis Bledel), a aparentemente louca e carismática Janine (Madeline Brewer), a esposa do comandante Serena Joy que ganha um episódio próprio bastante revelador com o impecável “A Woman’s Place” (1×06), onde podemos ver como uma mulher intelectual e instruída abre mão de suas conquistas para viver à sombra do marido e apoiar a revolução que destruiu a sociedade americana.
Outro episódio bastante emblemático é o interessante “The Other Side” (1×07), o segundo episódio da temporada que não foca totalmente em Offred, traz mais respostas sobre um dos personagens coadjuvantes mais importantes da série. Aqui pode-se dizer que a série destoa um pouco de seu tom, porém não perde em qualidade ao mostrar um pouco mais da luta por sobrevivência fora do universo em que Offred se encontra na mansão, uma forma que o showrunner Bruce Miller encontrou de mostrar que há uma saída fora das fronteiras deste novo mundo agora chamado de República de Gilead.
A série procura dar dicas sobre os pais fundadores desta nova sociedade, o episódio “Jezebels” (1×08) se aprofunda um pouco mais na mitologia construída pela série através dos olhos de Nick (Max Minghella), motorista pessoal do Comandante que mantém uma relação secreta com Offred. Aqui temos as primeiras menções aos chamados “Filhos de Jacob”, nome da cúpula responsável por criar a revolução que levou a este futuro assustador.
Nossos últimos episódios a um certo cuidado em fechar lacunas e trazer respostas, mas sem que aja ao certo grandes revelações. No assustador “The Bridge” (1×09) vemos Janine representar o impacto da influência negativa que os comandantes tem sobre suas criadas, em uma sociedade onde são mulheres tratadas como objeto e bebês são tratados como milagres, vemos a consequência quando o próprio sistema patriarcal criado é infringindo pelos seus próprios criadores evidenciando uma vulnerabilidade que apenas atinge os mais frágeis, nos levando a intensa cena da ponte que fecha este episódio.
O último episódio da temporada, o brilhante e emblemático “Night” (1×10), escrito pelo showrunner da série Bruce Miller e dirigido por Kari Skogland, lida com ações e consequências, ainda que seja um episódio que fecha um ciclo na vida de Offred, este consegue abrir possibilidades por romper barreiras dentro do sistema opressor, em uma narrativa que começa tensa e assustadora, no final consegue fechar a temporada com uma sensação de falsa esperança e principalmente incerteza sobre o futuro da personagem interpretada de forma marcante por Elizabeth Moss. Outros destaques aqui são as interpretações de Yvone Strahovski (impecável) que se mostra uma força da natureza encubada dentro de uma vilã cheia de camadas e complexidade, além de Ann Dowd mais uma vez no papel da assustadora tia Lídia.
VEREDICTO
Poucas séries hoje em dia conseguem fazer primeiras temporadas de forma tão bem estruturada e bem cuidada, neste caso The Handmaid’s Tale excede expectativas com um clima que lembra os melhores filmes indie do gênero futuro distópico (qualquer comparação com a obra prima Filhos da Esperança é inevitável), amparado por uma ambientação bastante imersiva e trilha sonora exemplar, onde não se tem quase nenhum ponto negativo (ainda acho o personagem Nick fraco) ao longo de seus dez episódios faz desta série um dos produtos mais relevantes do ano.
As interpretações são excelentes e fazem realmente você torcer para os personagens deste universo, o texto é bastante bem desenvolvido e consegue criar paralelos relevantes que não chocam por chocar, mas criam dúvidas no expectador, criam questionamentos e principalmente geram ótimas discussões sociais.
O texto do seriado é riquíssimo e ao tratar questões relevantes ao universo feminino, abre discussões importantes sobre machismo, conservadorismo religioso, liberdade de expressões, igualdade, violência física e mental, que nos faz pensar como nós seres humanos tratamos nós mesmos e como as causas feministas são extremamente necessárias para sociedade contemporânea.
The Handmaid’s Tale é um tapa na cara do pragmatismo, os paralelos com a nossa sociedade atual está embutido em cada frame do seriado, seja de forma explicita, ou de forma velada, explorando a raiz do problema, causando desconforto e nos fazendo refletir. Se a série seguir esta trajetória crescente mostrada na primeira temporada, podemos esperar algo ainda mais brilhante em seu segundo ano, se você ainda não assistiu, termine este texto e corra para ver, não irá se arrepender em nenhum momento.
Observações Sobre Seu Olho (Under His Eye):
Representatividade: O seriado teve 10 episódios e em sua maioria foi dirigido e escrito por mulheres que mostraram um trabalho acima da média. Outra curiosidade é que a própria autora do livro Margareth Atwood é consultora e produtora da série, assim como Elizabeth Moss protagonista da obra é produtora do seriado também.
Moira e Luke: O final da temporada foi explícito ao revelar o destino do marido e da melhor amiga de Offred, mas será este o primeiro passo para uma possível resgate de June e Hannah?
O destino de Offred: Depois da revelação do final da temporada, o destino de Offred está incerto, a personagem não deve ser morta, mas qual será a punição dela depois de desafiar o sistema?
Ecos de uma revolução: Uma das coisas que ficou bastante superficial na narrativa foi a revolução que acontece dentro do regime, vemos Offred tendo contato com vários revolucionários durante os episódios, mas nós nunca vemos os líderes rebeldes, entendo que atrapalharia o foco no desenvolvimento dos personagens, porém nada que possa ser explorado numa segunda ou terceira temporadas.
The Handmaid’s Tale, O livro: Aqui no Brasil o livro recebeu o nome de O Conto de Aia ou O Conto de uma Serva, o conto canadense foi publicado originalmente em 1985 (e em 1987 no Brasil) e recebeu diversos prêmios no Canadá e na Europa durante este período. Margareth Atwood autora da obra prefere dizer que o livro é uma ficção especulativa, pois poderia acontecer realmente no mundo real.
The Handmaid’s Tale, O filme: O livro antes de virar série, foi adaptado para o cinema em 1990 em um filme de mesmo nome protagonizado por várias estrelas da época, destaque para Natasha Richardson no papel de Offred, Robert Duvall no papel de Comandante, Faye Dunaway no papel de Serena e Aidan Quinn no papel de Nick.
The Handmaid’s Tale, A série: Vale lembrar que a série está renovada para segunda temporada que deve estrear em 2018 seguindo o mesmo formato, sendo lançada no site do Hulu todas as quartas feiras.
Até a próxima temporada e “Blessed be the fruit”.