Provavelmente meu único ressentimento com esse livro é ele ter acabado. Não, mentira, também me senti de certa forma traída pelo universo, que não me fez inteligente o suficiente para lê-lo antes (A Sombra do Vento está no Brasil desde 2007, e eu cheguei aqui em 1993. Como vocês vêem, não tem muita desculpa).
Dramas à parte, do que fala A Sombra do Vento (que eu fico digitando errado e confundindo com O Nome do Vento, então ignorem qualquer possível troca)?
Bem vindos, queridos amigos leitores, ao mundo apresentado por Carlos Ruiz Zafón. Aqui, vamos acompanhar a história de Daniel Sempere desde sua infância distante, quando numa noite especialmente difícil o menino percebe que não se lembra mais do rosto da mãe falecida. Nessa ocasião, seu pai, dono de uma livraria e alguns segredos, o leva a um lugar especial: O Cemitério dos Livros Esquecidos. Lá, a criança é agraciada com o direito e a missão de escolher um único livro entre os milhares que acumulam pó, para adotá-lo e garantir que sua história não seja perdida. E é assim que, depois de anos no esquecimento, A Sombra do Vento volta à luz.
Daí você me pergunta: Mas que diabos tem de tão especial uma história sobre um menino e um livro? Meninos e livros existem aos montes.
Vamos lá
Munido de uma curiosidade persistente e um respeito admirável pelo autor de A Sombra do Vento, o misterioso Julián Carax, Daniel se vê às voltas com dúvidas infinitas: O que aconteceu com o escritor? Por que é tão difícil encontrar pessoas que o tenham conhecido? E por qual motivo alguém iria atrás de todas as suas obras com o único intuito de queimá-las?
Numa Barcelona pós-guerra que se mostra o palco perfeito para todo tipo de cena de amor ou desgraça, Zafón guia o leitor com sutileza e maestria, deixando no ar todo tipo de questionamento e ao mesmo tempo contando uma história que é romance, mistério, tragédia, suspense e, apesar da total ausência de elementos sobrenaturais palpáveis, tem um quê inegável de fantasia.
A Sombra do Vento é um livro complexo, não por dificuldade de interpretação, mas por sobreposição de camadas. São histórias antigas e novas, passado e presente, boatos e fatos se misturando para formar a verdade que se tenta descobrir. Ao mesmo tempo em que acompanhamos a formação de Daniel, passando pela infância e adolescência, acompanhamos o crescente mistério que envolve Julián Carax, seu passado, fantasmas e segredos. Ainda que as dúvidas não sejam resolvidas todas de uma vez no final, sendo parcimoniosamente distribuídas ao longo da narrativa, sempre há algo mais para saber, porque as facetas, fachadas e perguntas estão por todas as partes.
Do jeito que eu escrevo, o livro parece um mistério, certo? Sim, certo! E errado.
Essa é uma história que engloba muitos gêneros. Ainda que seja uma ficção, de certa forma parece plausível e real. Os personagens parecem pessoas com quem você cruza, gostaria de cruzar, ou atravessaria a rua para não cruzar com. Há um humor inteligente, uma ironia sutil, passagens de suspense com um dedo no terror, além de tantas outras nuances.
Apesar dos múltiplos aspectos, A Sombra do Vento não é um livro com elementos demais para se organizar; O autor consegue guiar o leitor com suavidade. A linguagem é um espetáculo à parte, fazendo os gracejos mais mundanos com as palavras mais brilhantes, brincando com vocábulos e fazendo malabarismos mirabolantes que acabam sendo mais impactantes do que qualquer frase de efeito. Esse palavreado astuto e bem colocado é, nos pontos mais luminosos, obra de Fermín Romero de Torres, sem dúvidas o personagem mais cômico de todo o livro, com seus trejeitos e disfarces.
Além de Fermín, A Sombra do Vento conta com outras personalidades excêntricas. O próprio Daniel, apesar de narrador, perde parte do seu espaço para os demais personagens; Nem todos são detalhadamente construídos, mas o autor sempre dá ao leitor alguma perspectiva, por menor que seja, para que se saiba ao menos o necessário. Ainda que não conheçamos todo o passado e os motivos de cada pessoa, sabemos ao menos o suficiente para entender seus motivos primários. Um exemplo são os romances do livro, que são, em geral, um tipo de paixão que não se constrói na convivência, e sim nas situações. E ainda que pareçam repentinos, os relacionamentos ainda são reais, por conta do clima construído ao longo da narrativa, que é extremamente propício e compatível com os acontecimentos.
Entre as outras características peculiares do livro está o fato de A Sombra do Vento ser parte de uma série de livros que não são exatamente continuação um do outro. O lançamento, por exemplo, não está em ordem cronológica – até porque não existe uma.
Por enquanto, a série intitulada ‘O Cemitério dos Livros Esquecidos’ contra com três livros. A Sombra do Vento foi o primeiro lançado, mas O Jogo do Anjo, segundo, na verdade se passa antes. Além disso, o terceiro, O Prisioneiro do Céu, são acontecimentos que se encaixam dentro do primeiro livro. Ou seja, depois do começo, mas antes do final. NA SUA CARA, SOCIEDADE.
Apesar de ser uma série, e de não ter ordem cronológica exatamente definida, cada romance é independente dos demais. Prova disso é que eu li O Prisioneiro do Céu antes de A Sombra do Vento, e amei os dois de maneira igualmente profunda. Sério. O Jogo do Anjo já ganhou prioridade nas próximas leituras.
Carlos Ruiz Zafón é um dos autores que fazem muito sucesso em números – vendeu tantos milhares aqui, tantos milhares lá – e, no entanto, parece que pouca gente de fato conhece. Portanto, fica uma sugestão de leitura que eu espero que alguns de vocês, leitores, aceitem. Às vezes eu acredito que, se uma pessoa aceita uma dica e não gosta do livro, a culpa foi minha. No caso dos livros do Zafón, não se enganem, eu não vou pedir desculpas. Ao invés disso, vou julgar o seu gosto literário (okay, exagerei, mas deu pra entender, certo?).
Em resumo, este é um livro que merece ser lido, lembrado e amado. Se depender de mim, nunca mais volta para o cemitério.