Quando, em 2006, Bernard Cornwell lançou O Último Reino, primeiro de uma série chamada Crônicas Saxônicas fomos surpreendidos com um mais título que renderia uma boa sessão de leitura e nos deixaria aguardando ansiosamente os próximos volumes. Autor das trilogias Crônicas de Artur e A Busca do Graal, além de diversos outros títulos (quase todos épicos), Cornwell é dono de um estilo de escrita único e cinematográfico que deixa pouco espaço para respirar enquanto somos levados para o meio de guerras medievais, fortalezas sob ataque constante e paredes de escudo onde a linha é muito tênue entre o medo da morte e o jubilo da batalha.
Crônicas Saxônicas é mais um apanhado de fatos que o autor faz com extensas pesquisas sobre o período medieval (por volta de 800-900 d.C.) e os costura numa colcha que só não se torna inteiramente verdadeira porque o próprio autor, ao fim de cada livro, faz questão de dizer o que foi criado e o que foi inspirado na realidade. Trata-se então de uma aula de história com toques de ficção, onde vamos aprendendo como os reinos da antiga Gra-Bretanha quase sucumbiram às invasões vikings e se tornaram o poderoso reino da Inglaterra.
O relato poderia se tornar enfadonho com tantos nomes, reinos, títulos e batalhas, não fosse o grande diferencial da série: seu personagem principal e narrador dos fatos. Cornwell é conhecido por seus personagens cativantes, mas nas Crônicas Saxônicas somos apresentados à uma de suas melhores criações: Uhtred de Bebbanburg, um guerreiro nortumbriano que é criado como Viking, mas resolve lutar pelos anglo-saxões nas batalhas que ajudarão a formar um país unificado tanto na religião quanto na ideologia.
Uhtred não é um herói comum. Talvez nem seja um herói, pelo menos não nos primeiros livros da serie. O líder e guerreiro implacável é arrogante, interesseiro e orgulhoso e tudo o que faz é com o objetivo pessoal de recuperar a fortaleza de Bebbanburg, um forte inexpugnável no norte da Nortúmbria que sempre esteve sob comando de sua família, mas que, depois da morte do seu pai em batalha, foi usurpada por seu tio. Sua espada é tão feroz quanto sua língua e, mesmo sendo um pagão assumido e orgulhoso num reino onde o intolerante cristianismo está em voga, Uhtred acaba conquistando a confiança de Alfredo, o Grande e se torna peça chave nas estratégias do rei. A princípio o guerreiro o segue por interesse, mas depois por acreditar e compartilhar com o sábio rei o sonho de uma Inglaterra unida. Esse é aliás um dos pontos mais altos de toda a série: notar como Uhtred evolui, aprende e se transforma. Em 8 livros acompanhamos a história do guerreiro que nasceu como segundo filho renegado até se tornar o maior nome de guerra no exército saxão, passando por fases como fora da lei, prisioneiro, assassino, exilado e vira-casaca.
O Trono Vazio, lançado recentemente pela Editora Record continua as crônicas após a batalha de Teotanheale mostrada no livro anterior, O Guerreiro Pagão. Agora, mais ou menos um ano após o ocorrido, o guerreiro tem não apenas que lidar com seus inimigos costumeiros – hordas de dinamarqueses e noruegueses que ainda tentam invadir o reino da Mércia – como tem que cuidar de algo com que nunca havia precisado se preocupar antes: sua saúde. Vítma de um grave ferimento que recebeu durante a vitória na batalha de Teontanheale, Uhtred precisa ir em busca da arma que o feriu ao mesmo tempo em que descobre um golpe de estado que visa eliminar do jogo de poder pessoas que lhe são caras.
O livro mantém a qualidade apresentada nos 7 volumes anteriores e a nova condição de Uhtred nos adiciona um sabor até então inédito e que se torna muito interessante. Afinal, o guerreiro que parecia intocável e indestrutível, está próximo da morte e o fato de sabermos que ele está vivo (afinal, é ele o narrador) nois deixa intrigados querendo saber como ele se recuperará. A narração, porém peca levemente nas batalhas e, principalmente, no desfecho delas, uma vez que, após 7 livros que tratam basicamente sobre guerra, torna-se repetitivo o fato de que Uhtred sempre chega no momento chave ou é salvo na hora H por algum exército aliado. Isso não se torna um problema, já que em O Trono Vazio, somos levados para um outro aspecto das obras de Cornwell que são igualmente ou mais fascinantes que as batalhas em si: as aventuras pessoais do protagonista. Isso já havia acontecido nas Crônicas Saxônicas, como quando Uhtred é vendido como escravo e esses momentos são os mais interessantes de toda a obra, pois é quando há uma maior reflexão do narrador acerca dos fatos e de como aquilo se reflete no futuro em sua visão mais madura e sábia. Portanto, é nessa pequena subtrama da busca de Uhtred pela espada que o feriu e o deixou à beira da morte, que está o melhor de O Trono Vazio. De quebra, somos apresentados à uma região até então inexplorada nos livros: os reinos galeses e o “formidável” Rei Hywel, o Bom.
Confesso que, quando adquiri aquele primeiro volume da série, há quase 10 anos estava preocupado com a quantidade de volumes que se seguiriam dali, afinal, outra série do autor, Aventuras de um Soldado nas Guerras Napoleônicas, tem longos 11 volumes. Hoje, após acompanhar o guerreiro pagão por tanto tempo e me apaixonar por mais um enredo criado por Cornwell, fico preocupado com o fato de Uhtred estar ficando velho e se aproximando de sua antiga ambição: a conquista de Bebbanburg. Que Odin permita que ele viva para mais 8 volumes nos proporcionando cenas de batalhas incríveis, comentários ácidos e estratégias arrojadas!
Felipe Perazza é o cara por tras do blog Músicas de Andarilho e autor do livro Heróis e Anônimos.