Review | Dreamfall: The Longest Journey

Dreamfall dá continuidade à saga The Longest Journey, então recomendo bastante que você veja sobre o primeiro jogo antes de prosseguir.

Em comparação a TLJ, várias coisas novas foram acrescentadas em Dreamfall e a primeira delas é a possibilidade de revezar entre três protagonistas que eventualmente se encontrarão: a boa e velha April Ryan, Zoë Castilo e Kian Alvane. Zoë é uma jovem desiludida com a vida que largou a faculdade de bioengenharia, terminou com o namorado, não tem emprego e possui poucos amigos realmente próximos, morando em uma Casablanca futurista. Kian, por sua vez, é um soldado e apóstolo Azadi, na realidade mágica de Arcadia.

dreamfall zoe

A história começa mostrando um antigo conhecido do jogo predecessor, Brian Westhouse, em um monastério tibetano. Lá, ele participa de uma espécie de ritual, levando-o ao desconhecido Storytime e sendo atacado por uma criatura cuja única alma presente no local a chama de Undreaming, após advertir Brian que ele não deveria estar lá. Corta-se a cena e Zoë é apresentada em estado de coma, pedindo, durante um monólogo, pra ser ouvida por nós. É aqui que o jogo propriamente dito começa – e novamente em forma de um imenso flashback.

Reza, um ex da Zoë e jornalista investigativo, conta que está fazendo uma matéria ~super secretona~. Devido à carga de trampo, ele pede à garota que pegue um envelope confidencial na empresa em que trabalha. Mais tarde, ao se deslocar para o apartamento dele, se depara com uma mulher morta conectada a um estranho aparelho para, em seguida, ser presa por policiais sinistros que a interrogam. Logo depois ela fica sabendo que Reza desaparecera. Saber do seu paradeiro é a principal motivação de Zoë do começo ao fim, obviamente botando-a em perigo com frequência.

Durante a investigação, descobrimos a existência de um projeto secreto que promete ser um marco na indústria de entretenimento e está diretamente relacionado ao sumiço do ex. E nesse meio tempo, Zoë é atormentada constantemente por um vídeo bizarro em que uma criança fantasmagórica aparece até mesmo em monitores desligados. Encontre a April, salve a April!, suplica sem parar. Eventualmente descobrimos quem é ela, mas não da maneira mais feliz…

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Quem veio de The Longest Journey deve se lembrar de como April nada mais era do que uma simples estudante, de espírito leve e meio ingênuo. Agora, dez anos depois, ela foi determinada como desaparecida pelos seus melhores amigos de Newport, onde morava, pois nunca mais saiu de Arcadia. Somado a isso, ela gradualmente passa a tomar uma postura bem mais rígida, desconfiada, de poucos amigos. É agora uma guerreira, líder de um grupo rebelde contra a dominação dos Azadi em suas terras. Em outras palavras, April continua carregando o fardo do primeiro jogo de ter que proteger alguém por uma causa justa.

April toda trabalhada no gótico. Talvez seja pra enfatizar a mudança radical de personalidade.
April toda trabalhada no gótico. Talvez seja pra enfatizar a mudança radical de personalidade.

Quando passamos a acompanhá-la e, mais pra frente, conhecer Kian, há uma exploração muito interessante na narrativa no que diz respeito à supremacia de um grupo sobre outro, segregação racial e fundamentalismo religioso – além do próprio sentido de “ter fé”.

No final de TLJ, a cidade de Marcuria é invadida por um exército bárbaro, os Tyren, dando início a uma guerra, mas rapidamente derrotados pelos soldados Azadi no mesmo ano. A partir daí, seu império se instala por lá, implantando forçadamente suas avançadas máquinas a vapor em todo canto, impondo sua devoção à Deusa como única crença legítima e regulando a liberdade de expressão como um todo. Além disso, eles nutrem um grande temor pela magia, proibindo-a e enfurnando todos os magos e seres não-humanos possíveis em um gueto. Obviamente, isso provoca uma legião de rebeldes, chamados de terroristas tanto pelos Azadi quanto pelos humanos indiferentes à desigualdade social. Afinal, a cidade foi libertada por eles e ainda trouxeram prosperidade, como alguém pode ser tão ingrato?

Uma dica: Quando estiver controlando os três protagonistas em Arcadia, fale com todos os NPC’s que encontrar, pois rola várias diferenças interessantes nos (poucos) diálogos, enriquecendo a trama e mostrando o quão séria é a situação.

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Em TLJ, tão bom quanto a história são os personagens, incrivelmente carismáticos, mesmo os secundários. Já em Dreamfall eu diria que eles são proporcionalmente menos interessantes e até mais rasos, mas alguns ainda prendem a atenção. Um deles é Olivia DeMarco, uma amiga super hi-tech de Zoë. Ela, inclusive, te ajuda regularmente, fazendo coisas desde a botar um app no seu celular pra ficar “invisível” a desencriptografar dados deixados por Reza – sem falar nas vezes que ela te orienta durante a jornada. A Liv tem uma loja cheia de bugigangas eletrônicas, vendendo, por exemplo, gorilas-robôs domésticos de IA complexa chamados Watilla; mas para clientes específicos, ela também faz “softwares semi-ilegais”, parafraseando Zoë.

O sistema de conversa no jogo é mais ou menos o que vemos hoje nos títulos recentes da Telltale: vira e mexe você poderá adotar uma fala mais suave ou ser mais grosseira, além de poder mentir quando for preciso. A diferença, quando há, afeta a situação exata que você presencia: pode-se lutar contra algum personagem ou evitar o conflito, por exemplo. Às vezes, o que você disser vai mudar a dificuldade e a maneira pela qual resolverá o “grande puzzle” de uma situação específica, como quando Zoë está em Tóquio e precisa chegar num museu, mas não consegue comprar os ingressos.

Eis o "modo focado".
Eis o “modo focado”.

Aí vem a parte dos acréscimos não tão bem-vindos que a saga recebeu, como as lutas corpo-a-corpo. Elas são bastante simplórias em termos de possibilidades e um horror na execução, contando também com um stealth tão desengonçado e sofrível quanto, infelizmente inevitável de fazer, ao contrário (de alguns) dos confrontos. Por último, existe um “modo focado” que cada personagem jogável possui e é ativado no botão direito do mouse. É um recurso raramente necessário (ao menos na versão PC, visto que ele também saiu pra Xbox) e, por causa disso, é um problema nas vezes em que você REALMENTE precisa usá-lo pra resolver algum puzzle por ser contra intuitivo.

Em suma, a parte “jogo” de Dreamfall é seu maior calcanhar de Aquiles, pois além dos problemas que apontei, os controles são meio truncados (ao menos pros padrões atuais) e os puzzles são frequentemente chatos. Alguns são mal-feitos, outros são banais e, se você ADORAVA fazer um puzzle atrás do outro em The Longest Journey, provavelmente vai se decepcionar com Dreamfall. Da minha parte, até aprecio não ter que encarar a mesma caralhada de puzzles e nem de ficar presa tantas vezes como no primeiro jogo, ainda que os puzzles presentes dificilmente sejam bons de fato. Mas, pra ser um pouco justa, Ragnar Tørnquist, roteirista da saga, explica as decisões de design nessa entrevista do RPS:
[quote]Sobre o nível de dificuldade, nosso objetivo era tornar o jogo bem simples porque, nas nossas análises, metade das pessoas que jogaram TLJ pararam em um certo momento durante a jogatina porque estava muito difícil, e ele é bem longo também. Então dissemos: Vamos fazer Dreamfall curto e fácil. Vamos fazer com que o foco seja contar a história, de modo que as pessoas o terminem em 10 horas, divirtam-se e nunca precisem se esforçar demais com alguma coisa. Isso obviamente vai irritar os gamers, especialmente se você está procurando por uma aventura de solucionar as coisas [por conta própria]. Não há grandes obstáculos em Dreamfall, tirando a frustração em tentar se esconder. Mas isso foi intencional e estou disposto a manter esta decisão. Poderia haver mais interatividade, mas sinto que um dos defeitos de TLJ era os puzzles que, às vezes, eram só puzzles. Eu queria fugir disso. Assim, tentamos fazer com que cada puzzle estivesse integrado ao enredo, te fazendo avançar todas as vezes. Fazer isso é mais difícil do que parece, especialmente quando você está lidando com uma tecnologia completamente nova, fazendo um jogo pra PC e Xbox ao mesmo tempo com uma engine inédita e com uma equipe nova. Muito difícil.[/quote]

(A propósito, super recomendo a leitura da entrevista inteira por ser excelente e aprofundar vários aspectos nem sempre óbvios do jogo e pela importância das personagens femininas.)

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A cidade de Marcuria em toda a sua glória.

Não há dúvidas que Dremfall está graficamente datado e não costumo implicar muito com isso, mas o maior problema que o jogo tem nesse aspecto é as animações tanto corporais quanto faciais. É muito escroto. Quando os personagens estão parados, parecem estátuas falantes e eles costumam ficar com uma cara de bunda por padrão, principalmente quando estão preocupados/temerosos/etc. A razão da ênfase pra esse detalhe é que ele me atrapalhou muito na imersão. Apesar disso, a direção de arte é belíssima de um modo geral. Os cenários (especialmente naturais) são muito bonitos e gosto do design de algumas criaturas e estabelecimentos, como o interior orientalizado do The Fringe. Além do mais, depois de visitar os locais pré-renderizados de TLJ, a sensação de revê-los em 3D de verdade é maravilhosa. E rever personagens conhecidos com 10 anos de diferença, saber que fim levaram, se mudaram muito…

Por último e não menos importante, o “final”. O jogo termina de modo absolutamente abrupto, deixando inúmeras coisas sem explicação. O motivo? A Funcom iria lançar o resto da história em formato episódico. A ideia não deu lá muito certo e a série só foi retomada uns sete anos depois, a partir do momento em que o estúdio independente Red Thread Games é fundado pelo Ragnar. No momento em que escrevo, a continuação Dreamfall Chapters está em seu terceiro capítulo de cinco. Em breve irei resenhá-lo todo por aqui ;)

Se você gosta de boas histórias e consegue relevar todos os problemas que mencionei, eu realmente recomendo Dreamfall. A saga toda tem um lugarzinho especial no meu <3. Vale a pena dar uma chance.

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